A astrônoma cega que criou técnica para 'escutar' o céu em busca de vida fora da Terra

  • Fernando Duarte
  • Da BBC Brasil em Londres
Wanda Diaz Merced

Crédito, TED

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Wanda perdeu a visão quando tinha apenas 19 anos

Exoplanetas - planetas orbitando estrelas fora do Sistema Solar - tornaram-se a mais nova aposta de astrônomos em busca de vida extraterrestre. Cientistas como a porto-riquenha Wanda Diaz Merced esquadrinham o espaço em busca de pistas que possam indicar que "não estamos sós".

Só que a relação de Wanda com o céu é fora do comum. A astrônoma, de 35 anos, perdeu a visão quando ainda estava na universidade, em consequência de complicações da diabetes. Para fazer seus estudos e compensar a deficiência visual, ela precisou aprender a "escutar" o céu.

E a porto-riquenha é rápida para dizer que não considera sua carreira na astronomia um feito heroico.

"Na verdade, todos nós deveríamos reaprender a usar outros sentidos que não a visão. Há poucas décadas, por exemplo, até a astronomia se valia exclusivamente do som para explorar o espaço", conta ela, em uma conversa com a BBC Brasil em um restaurante de Londres.

Wanda se refere à radioastronomia, o estudo de corpos celestes através das ondas de rádio por eles emitidas, uma descoberta feita em 1932 e que em anos posteriores revolucionou o conhecimento sobre o universo antes de sondas percorrerem os confins do sistema solar.

"Nossa civilização é muito orientada para o visual e isso se reflete na ciência. Ficamos acostumados em confiar apenas nos dados que vemos, quando nossa percepção pode ser aumentada se também dermos atenção a outros sentidos", acrescenta.

Wanda Diaz Merced com fones de ouvido

Crédito, Wanda Diaz Merced

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'A ciência tem o dever de promover a inclusão. Todos nós podemos contribuir para o conhecimento humano', diz Wanda

E foi isso que Wanda fez para realizar o sonho de estudar o espaço. Em vez de visualizar dados, ela se propôs a estudá-los através de uma técnica chamada sonificação - a conversão de informações em sinais sonoros. À primeira vista, pode (sem trocadilho) soar complicado, mas um exemplo mais básico da técnica é o contador Geiger, instrumento usado para detectar a presença de radioatividade e que, além de um medidor, emite sinais sonoros que se intensificam proporcionalmente aos índices de radiação.

"Era minha única chance de conseguir realizar meu sonho de ser astrônoma. Em 1999, um orientador vocacional me recomendou desistir, mas eu não conseguia parar de pensar que podia ser útil. Intuição e sensibilidade não são mutuamente exclusivas. Por que eu não poderia fazer um trabalho do mesmo nível dos meus colegas?", questiona.

A chance de mostrar serviço veio durante um estágio em um centro de pesquisas da Nasa, a agência espacial americana: seu mentor, o astrofísico Robert Candey, desafiou Wanda a criar uma forma de incluir pesquisadores com deficiência visual na análise de dados coletados pelas novas gerações de radiotelescópios.

Registro de pulso de raio gama

Crédito, NASA

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Dados sonoros podem ajudar a estudar eventos complexos de monitorar, como pulsos de raios gama

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Foi quando ela desenvolveu uma técnica de converter dados complexos em sons audíveis, usando variações de duração, tom e timbre, entre outras propriedades.

Com essa técnica, ela conseguiu detectar "emissões de energia em explosões estelares que haviam passado despercebidas pela análise visual". "O uso do som aumentou a quantidade de informações que astrônomos podem coletar."

É com base nisso que Mercedes tem agora se dedicado à tarefa de tentar interpretar sonificações de dados de exoplanetas para buscar informações sobre condições atmosféricas e propriedades químicas que possam indicar condições para a existência de vida.

Ainda mais quando avanços tecnológicos resultaram em um salto no número de exoplanetas descobertos - apenas em 2016, mais de mil foram acrescentados a uma base de dados internacional sobre novos mundos.

Acima de tudo, a técnica permitiu que Wanda não precisasse desistir do sonho de explorar as estrelas - quando menina, ela fingia que sua cama era uma espaçonave. Sem falar que sua pesquisa abriu espaço para que mais pessoas com deficiência visual busquem uma carreira em ciência.

Mark Ballora

Crédito, Patrick Mansell, Penn State

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Mark Ballora criou experimento que ajuda a diagnosticar apneia do sono

"A ciência pode se beneficiar imensamente de um aumento de percepção. E eu posso continuar a fazer o que amo e estimular mais pessoas como eu a não desistir de perseguir seus sonhos. A ciência tem o dever de promover a inclusão. Todos nós podemos contribuir para o conhecimento humano".

A participação não precisa estar restrita à astronomia. O pesquisador americano Mark Ballora, professor de tecnologia musical da Universidade Estadual da Pensilvânia, desenvolveu um projeto de sonificação que, a partir da conversão de dados de eletrocardiogramas, conseguiu diagnosticar casos de Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono antes da realização de uma polissonografia - o teste de registro do sono usado no diagnóstico tradicional.

"A audição não precisa competir com a visão, mas sim trabalhar em conjunto. À noite, nossos ancestrais às vezes não podiam ver o que estava em volta, mas sons poderiam alertar para a presença de inimigos ou predadores. A sonificação de dados meteorológicos, por exemplo, já possibilitou que cientistas aumentassem sua compreensão sobre padrões de comportamento de tempestades", conta Ballora.

Wanda atualmente vive em Cidade do Cabo, na África do Sul. Além de suas pesquisas em astrofísica, dá aulas para crianças cegas, para quem leva constantemente amostras de suas sonificações. É parte de seu trabalho em um projeto da União Astronômica Internacional (UAI). Ela também dá palestras ao redor do mundo em escolas e universidades.

"A perda da minha visão na verdade me deixou ainda mais determinada a ser astrônoma. Quando faço palestras ou dou aulas, minha principal missão é estimular que as pessoas não desistam de seus sonhos e que vejam as oportunidades que estão à frente. Qualquer pessoa no mundo pode algum dia desenvolver uma doença e precisar de uma nova forma de exibir seus talentos. Somos todos exploradores naturalmente", finaliza.