Greves, ação na justiça e protestos: como jogadoras estão conseguindo mudar a desigualdade de gênero no futebol

  • Renata Mendonça
  • Enviada da BBC Brasil ao Rio de Janeiro
Seleção norueguesa de futebol feminino

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Mulheres ainda enfrentam grande resistência para jogar futebol em praticamente todos os países

O futebol é o esporte mais popular do mundo, mas, quando praticado por mulheres, ainda é alvo de grande resistência em praticamente todos os países. Em vários deles, incluindo o Brasil, a modalidade chegou a ser proibida por lei.

Como consequência disso, os investimentos e a visibilidade do futebol feminino continuam raros ao redor do mundo.

Por meio de reivindicações, greves e até ações na Justiça, porém, as mulheres estão conseguindo conquistar avanços consideráveis no combate à desigualdade de gênero nesse esporte.

Listamos aqui algumas dessas ações.

Estados Unidos

Se o Brasil é conhecido como o "país do futebol", os Estados Unidos certamente podem ser chamados o "país do futebol feminino". Com três títulos mundiais e quatro ouros olímpicos, as americanas dominam o cenário da modalidade.

A maior audiência da história da TV americana no futebol veio delas - a final da Copa do Mundo de 2015, contra o Japão.

Mas mesmo com resultados muito melhores do que a seleção masculina e gerando mais lucro para a confederação americana de futebol (US Soccer) do que os homens, a seleção feminina ainda recebia bem menos do que eles.

Por causa disso, algumas das principais jogadoras entraram na Justiça para pedir igualdade de pagamentos - segundo elas, a seleção feminina ganhava quatro vezes menos do que a masculina, mesmo gerando US$ 20 milhões a mais para a confederação.

Isso aconteceu em março do ano passado, quando a goleira Hope Solo, as atacantes Carli Lloyd (eleita a melhor do mundo em 2016) e Alex Morgan e a veterana Megan Rapinoe assinaram um abaixo-assinado e processaram a US Soccer por discriminação.

"Estou nesse time há uma década e meia e estive em diversas negociações sobre salários. Sinceramente, quase nada mudou desde então", afirmou Hope Solo. "Nós continuamos ouvindo que deveríamos ser gratas só por ter a oportunidade de jogar futebol profissional e sermos pagas por isso."

Marta

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A jogadora brasileira Marta ganhou cinco vezes o prêmio de melhor do mundo

Em abril deste ano, um novo acordo finalmente foi anunciado pela confederação, com consideráveis aumentos para as jogadoras americanas. Os ganhos subiram em 30% e poderão chegar a dobrar dependendo dos bônus que elas conseguirem por vitórias em partidas e torneios.

Ainda assim, o aumento não significou igualdade de pagamentos com a seleção masculina porque, segundo a confederação, as diferenças de mercado dos clubes e de pagamento de bônus pela Fifa ainda são grandes. Mas representaram um progresso.

"Estou muito orgulhosa da luta que tivemos em todo esse processo", disse a meio-campista Rapinoe.

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O que é o #100Mulheres?

A série #100Mulheres, da BBC (100 Women), indica 100 mulheres influentes e inspiradoras por todo o mundo anualmente. Nós criamos documentários, reportagens especiais e entrevistas sobre suas vidas, abrindo mais espaço para histórias com mulheres como personagens centrais.

Neste ano, a BBC está desafiando mulheres ao redor do mundo a proporem soluções para quatro problemas globais relacionados ao sexismo.

No Brasil, o tema trabalhado será "sexismo no esporte", focado principalmente no futebol. Desde a segunda-feira, o #TeamPlay sediado no Rio terá uma semana para inventar, desenvolver e entregar um protótipo - uma solução em tecnologia, um design inovador ou uma campanha - para apoiar as mulheres nos esportes e combater as atitudes sexistas que podem impedir o seu avanço.

Acompanhe a cobertura em facebook.com/BBC100women e aqui no site da BBC Brasil.

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Dinamarca

No país, as jogadoras entraram em greve para conseguir melhores condições. Na última semana, quando a seleção feminina teria de disputar um jogo das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2019, elas boicotaram treinamentos por dois dias em protesto pedindo remunerações mais justas por parte da confederação local.

Esta, por sua vez, optou por cancelar a partida contra a Suécia e afirmou que esse havia sido um "dia ruim histórico para a seleção feminina e para o futebol dinamarquês como um todo".

"É lamentável e também grotesco que nós estejamos numa situação em que as jogadoras não compareçam em jogos internacionais importantes, mesmo que tenhamos oferecido melhores condições e que tenhamos as convidado para negociações depois das partidas", disse o vice-presidente da confederação dinamarquesa de futebol, Kim Hallberg.

Jogadoras comemoram gol
Legenda da foto, Na Dinamarca, as jogadoras chegaram a entrar em greve para conseguir melhores condições

Segundo a entidade, o aumento prometido no investimento para o futebol feminino do país teria chegado a 2 milhões de coroas dinamarquesas (mais de R$ 1 milhão), passando para 4,6 milhões de coroas (R$ 10,9 milhões) por ano, para serem utilizados em salários, bônus e outros.

A negociação tem se estendido desde novembro de 2016 e se intensificou depois do bom resultado que a seleção feminina conseguiu na Eurocopa - elas ficaram com um inédito vice-campeonato no torneio.

Depois disso, a confederação anunciou ter chegado a um acordo parcial com as jogadoras para que elas ao menos disputassem o segundo jogo previsto das eliminatórias, que aconteceu na última terça-feira, contra a Croácia. As dinamarquesas venceram por 4 x 0.

As atletas ainda não se pronunciaram oficialmente sobre qualquer acordo.

Noruega

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Vizinho da Dinamarca, o país foi além e conseguiu algo inédito no futebol mundial: a igualdade de pagamentos para as seleções feminina e masculina. Isso porque os próprios jogadores do país optaram por abrir mão de parte de seus vencimentos para que as mulheres pudessem receber o mesmo que eles.

O anúncio foi feito ainda no início deste mês pela confederação norueguesa de futebol.

A remuneração das mulheres, que era de 3,1 milhões de coroas norueguesas no ano (R$ 1,2 milhões), praticamente dobrou, passando para 6 milhões de coroas (R$ 2,4 milhões). A dos homens caiu de 6,5 milhões para 6 milhões - a redução corresponde ao valor de acordos de publicidade doado pelos jogadores para complementar os salários delas.

"A igualdade de gênero é muito importante na Noruega, então acho que isso é muito bom para o país e para o esporte", disse o presidente da federação norueguesa, Joachim Walltin. O acordo começa a valer a partir de 2018 - a seleção feminina do país é a 14ª do ranking da Fifa, enquanto a masculina é a 58ª.

Austrália

Lá, a conquista foi para todas as jogadoras que atuam no país.

A federação australiana de futebol anunciou um novo acordo com o sindicato das atletas em que estabelece o pagamento mínimo mensal para elas: 10 mil dólares australianos (cerca de R$ 25 mil). Com isso, a média salarial da liga de mulheres passará de 6,9 mil para 15,5 mil dólares australianos (de R$ 17,2 mil para R$ 37,5 mil) a partir do próximo ano.

Antes desse acordo, muitas jogadoras que atuavam em clubes do país eram tratadas como amadoras, e muitas vezes nem sequer recebiam salário - tinham apenas uma ajuda de custo.

O chefe executivo da Federação Australiana de Futebol, David Gallop, disse que esse é "o início de uma nova era no futebol feminino do país".

Jogo entre Brasil e Austrália

Crédito, EPA

Legenda da foto, Com reivindicações, greves e até ações na Justiça, as mulheres conquistam avanços consideráveis no combate à desigualdade de gênero no futebol

"As jogadoras da liga merecem esse aumento salarial. Elas são pioneiras no esporte feminino da Austrália e estão prestes a estrear a décima temporada do torneio", pontuou o dirigente.

"Nós estamos determinados a atingir a igualdade de gênero no nosso esporte e oferecer o melhor para as nossas atletas australianas."

Além do aumento no pagamento, as jogadoras terão também mais visibilidade. Acordo fechado pela federação com a Fox Sports prevê a exibição de mais jogos na TV nesta temporada - foram 17 no último ano e serão 27 a partir de agora.

As conquistas são consequência de reivindicações das jogadoras e dos últimos resultados em campo - a Austrália é atualmente a sexta colocada no ranking da Fifa. Em julho, venceu um torneio amistoso, derrubando as poderosas seleções de Estados Unidos, Japão e Brasil.

Brasil

No chamado "país do futebol", elas têm lutado por seu espaço desde a época em que eram proibidas por lei de praticar o esporte - foram quase quatro décadas, mais precisamente entre os anos de 1941 e 1979.

Apesar de algumas conquistas em campo - duas pratas olímpicas em 2004 e 2008 e um vice-campeonato mundial em 2007 - e outras individuais - Marta foi eleita por cinco vezes a melhor jogadora do mundo pela Fifa -, a seleção feminina tem vivido a maior crise de sua história.

No mês passado, após a CBF ter demitido Emily Lima do comando da seleção e anunciado o retorno do técnico Vadão (o mesmo que havia sido tirado do cargo para a entrada de Emily em 2016), cinco jogadoras anunciaram que não vestiriam mais a camisa do Brasil: a atacante Cristiane, as meio-campistas Fran, Rosana e Maurine e a zagueira Andreia Rosa.

Diante disso, as ex-jogadoras da seleção fizeram uma carta em protesto contra a CBF exigindo que mulheres ocupassem cargos de decisão na gestão do futebol feminino na entidade.

O documento repercutiu internacionalmente, e as ex-atletas conseguiram uma reunião com o presidente da confederação, na qual conseguiram aprovar a formação de um comitê com ex-jogadoras e outras pessoas envolvidas com o futebol feminino para que elas possam trabalhar com a CBF pelo desenvolvimento da modalidade.