'Junho de 2013 é um mês que não terminou', diz socióloga

  • Vinícius Mendes
  • De São Paulo para a BBC Brasil
Protesto em São Paulo em 17/06/2013

Crédito, Ag. Brasil

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Protestos de junho de 2013 tiveram uma série de confrontos entre PM e ativistas

Dezessete dias separaram os anúncios dos aumentos das tarifas de ônibus, metrô e trens em São Paulo e no Rio de Janeiro, em 2 de junho de 2013, e a revogação da decisão, no dia 19 daquele mesmo mês.

Entre as duas datas, aconteceu uma das maiores mobilizações coletivas da história recente brasileira que, mesmo sem ter sido completamente entendida, produz consequências até hoje.

Para o sistema político, a consequência mais imediata dos protestos foi a drástica e imediata redução na aprovação do governo da então presidente Dilma Rousseff (PT). Segundo o Datafolha, a presidente passou de 65% de aprovação em março para 30% no final de junho.

Processo semelhante aconteceu com os índices do ex-governador de São Paulo e hoje candidato à presidência Geraldo Alckmin (48% de aprovação em março para 38% em julho) e com o ex-prefeito da cidade, Fernando Haddad (de 31% para 18%).

Mas não parou aí. "Junho de 2013 é um mês que não terminou" avalia a socióloga Ângela Alonso, professora da USP e atual presidente do Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap). Há cinco anos, Alonso se dedica a abastecer um banco de dados com entrevistas, medições de protestos, recortes de jornais e demandas postas nas ruas referentes àquele mês.

Retrato da professora Ângela Alonso

Crédito, Ana Carolina Camargo/BBC Brasil

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Para a socióloga, a crise atual ainda é reflexo das tentativas de estabilização desde 2013

"O que estamos assistindo desde 2013 são tentativas de estabilização que logo se mostram equivocadas. Até a eleição não teremos esse processo encerrado, e é difícil saber se em algum momento ele será", afirma ela em entrevista à BBC Brasil.

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BBC Brasil - O Brasil saiu de junho de 2013?

Ângela Alonso - A crise desencadeada ali não acabou. Ainda temos consequências de médio e longo prazo do que aconteceu. Normalmente usamos a ideia de crise para falar de fenômenos agudos que acontecem em um tempo curto, então é difícil dizer se temos uma grande crise ou uma sequência de crises desde 2013.

O que costuma acontecer em crises é uma desorganização dos arranjos políticos, da maneira usual de tomar decisão, os procedimentos comuns já não são mais claros para os atores, enfim, uma grande volatilidade. Isso faz com que a incerteza cresça para todo mundo. O que estamos assistindo desde 2013 são tentativas de estabilização que logo se mostram equivocadas. Até a eleição não teremos esse processo encerrado, e é difícil saber se a eleição conseguirá encerrá-lo. Depende de quem ganhar.

BBC Brasil - As ciências sociais já conseguiram entender o que aconteceu naquele mês?

Alonso - Existem três leituras que apareceram já em 2013 e que continuam se recolocando. Uma frisou muito as causas, tentando explicar o que teria produzido junho. Apareceu muita coisa sobre a crise de representação, a ascensão de novos grupos sociais, como uma nova classe média, ou seja, explicações que lidaram com a raiz de junho. Outra perspectiva se fixou nos atores. Muita gente falou no Movimento Passe Livre (MPL), por exemplo, como se a crise pudesse ser circunscrita a um único ator.

É até paradoxal que se tenha escrito tanto sobre um movimento tão pequeno que fez uma campanha também relativamente pequena. Essas análises se prolongaram em estudos sobre as novas mídias, como a Mídia Ninja, e sobre o aparecimento de bandeiras mais à direita nos protestos subsequentes. A terceira linha de explicação, a qual eu me filio, tenta entender o processo. Ela tenta mostrar como vão aparecendo novos atores e novos temas, na medida em que o ciclo do protesto vai se desdobrando, sem que seja possível circunscrevê-lo a uma só bandeira.

BBC Brasil - O professor Breno Bringel, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), criticou a análise das mobilizações sociais por focar apenas nos seus "resultados mensuráveis", como possíveis mudanças eleitorais. A compreensão de junho de 2013 enfrenta esse desafio?

Alonso - É muito difícil dizer que um movimento social específico causou um resultado específico, porque a gente tem, sobretudo nas grandes mobilizações, muitos fatores contribuindo para o resultado ao mesmo tempo. É muito difícil isolar um fator decisivo e poder dizer que ele causou uma mudança.

No caso de junho, os efeitos imediatos até são mais tangíveis (as tarifas de ônibus baixaram durante os protestos), mas são menos mensuráveis no longo prazo (as tarifas subiram depois). Houve o represamento dos preços na crise, mas não uma coisa que possa ser chamada de "vitória" da mobilização. Uma consequência política mais visível é que ele trouxe para rua uma parte dos cidadãos que não vinha se manifestando antes.

BBC Brasil - Há relação entre junho de 2013 e mobilizações ocorridas no Oriente Médio, na Europa e nos EUA nos anos anteriores?

Alonso - Desde a chamada "Batalha de Seattle", em 1999, temos as chamadas mobilizações globais. Ali se estabeleceu um novo estilo de protesto que vem sendo usado em vários países desde então. Ele é mais midiático, recorre a recursos artísticos, tem pautas genéricas sem uma demanda única mais clara, usa diferentes estratégias de ação e é formado por diferentes grupos. O que aconteceu em Seattle se tornou famoso por causa dos confrontos entre parte dos manifestantes que usou a tática black bloc e as autoridades. Mas o importante é que ali estavam em uso várias táticas diferentes, várias causas diferentes e que adquiriram visibilidade por causa de um grande evento internacional (a reunião da Organização Mundial do Comércio) em curso paralelamente.

Ao longo de uma década e meia, muitas manifestações seguiram essa linha pelo mundo e foram umas impulsionando as outras. Elas foram sendo agendadas por ativistas que combinavam estratégias, localizações e táticas, como a de ocupar um espaço físico, por exemplo. Foram os casos do 15-M, em Madri, ocupando a Plaza Puerta del Sol, e do Ocuppy, em Nova York, no Zuccotti Park. Algumas estratégias vão sendo testadas e repetidas em outros lugares. Claro que cada um desses lugares tem suas razões de fundo para as emergências do fenômeno, mas existe um efeito dominó em que o raciocínio é: "deu certo lá, de repente dá certo aqui...".

Manifestantes na porta de refinaria, ao lado de cartaz que pede: 'Preço do óleo diesel justo!'
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A socióloga vê semelhanças entre a greve dos caminhoneiros e junho de 2013

BBC Brasil - A estratégia black bloc surgiu no Brasil apenas em junho de 2013?

Alonso - A tática surgiu com o nome "black bloc" nos anos 1980, na Alemanha, já com as características que reapareceram em vários protestos posteriores e que ganharam visibilidade internacional em Seattle, em 1999. No Brasil, já tinha sido usada em alguns pequenos protestos anteriores, mas ficou conhecida nacionalmente em junho de 2013. As características da tática black bloc são ataques a símbolos do capitalismo internacional, como bancos e redes fast food, e a símbolos do Estado, porque ela carrega uma origem anarquista, uma negação de que só o Estado tem o monopólio legítimo da violência.

O que surpreendeu as autoridades em Seattle é o uso dessa tática no interior de protestos que eram, em princípio, ordeiros. Aqui, as autoridades não estavam preparadas para lidar com ela. O que aconteceu em junho no Brasil foi uma grande perplexidade das autoridades políticas - prefeito, governador e presidente não sabiam o que fazer diante de uma técnica de protesto incomum - e das autoridades policiais também.

BBC Brasil - Essa surpresa foi responsável por uma repressão excessiva da Polícia Militar?

Alonso - Um dos episódios interessantes de junho foi quando as forças policiais tentaram negociar um percurso do protesto com os manifestantes. Como não havia um único movimento na rua, mas um conjunto deles, a negociação foi feita com uma fração que talvez até tenha cumprido o acordo, mas não com todos. Em junho, as pessoas se referiam ao "grupo black bloc" ou "aos black blocs" como se fossem uma comunidade com identidade própria e que, assim, seria possível rastrear e isolar essas pessoas.

O que se viu, sobretudo no final das manifestações de junho, foi um monte de gente colocando um lenço no rosto e "virando" black bloc. Quer dizer: elas passaram a usar a tática black bloc porque é o que ela é: uma tática, não um grupo. Como é uma tática, qualquer um que está na rua pode falar: "Hoje eu vou fazer isso também". Assim, você não tem possibilidade de controle como se fosse um grupo, em que basta prender uma liderança ou os membros de um único movimento. A repressão pode realmente acabar com o protesto e desencorajar as pessoas a voltarem às ruas, como pode ter o efeito contrário e atraído mais manifestantes.

Pensando do ponto de vista das autoridades, houve dois erros estratégicos dos repressores. O primeiro foi ter dosado mal a violência utilizada e os seus alvos. Ela não afetou apenas manifestantes, mas também a imprensa. Ao fazer isso, gerou uma virada na cobertura midiática do protesto visível já nos jornais do dia seguinte. O segundo erro foi a estratégia de repressão utilizada: a de "confinamento", isto é, o fechamento das saídas pelas ruas laterais da Avenida Paulista e das estações de metrô. Isso gerou um "beco sem saída" televisionado, transmitido ao vivo nas redes sociais, em que as pessoas estavam em situações de pânico porque não podiam fugir das bombas de gás. Essas duas coisas produziram um efeito de propaganda pró-protesto, porque o cidadão comum ficou indignado.

BBC Brasil - Por que tinham tantas demandas diferentes nas ruas?

Alonso - O que minha pesquisa tem apontado é que havia três grandes campos nas ruas. Tinham os grupos mais novos, que compõem o campo que chamo de "autonomistas", como o MPL, que chegaram com formas mais contemporâneas de protestar inspiradas na sequência de protestos globais pós-Seattle. Eles chegaram primeiro às ruas, causaram perplexidade com o uso da tática black bloc e ficaram mobilizados porque as autoridades não souberam reagir. Porém, eram poucos.

Nos dias seguintes, já houve a adesão de outro campo, que sempre fez protesto no Brasil e que se viu perdendo visibilidade naquele momento: os grupos de orientação "socialista". Já existia ali uma heterogeneidade nas ruas, porque não era a mesma gente e, inclusive, os dois campos tinham entrado em conflito. Os grupos socialistas trouxeram pautas em torno das quais eles se mobilizam desde a redemocratização: as políticas públicas e a agenda redistributiva, enquanto os grupos autonomistas não estavam mais vinculados à pauta do transporte, mas em questões como a de gênero, por exemplo.

A virada mais importante, penso eu, aconteceu depois da repressão, com o reposicionamento dos grandes veículos de comunicação, sobretudo o da Globo.

BBC Brasil - Junho também solidificou a simbologia das manifestações posteriores: o vermelho, o verde e amarelo, o preto. Como isso se construiu nas ruas?

Alonso - Se havia em um primeiro momento os grupos autonomistas de preto, com uma estética meio punk, depois os grupos socialistas com suas bandeiras vermelhas, essas pessoas que chegaram por último não se identificaram com nenhuma cor, e como muitos desses grupos não tinham seus próprios símbolos, recorreram à tradição. Aí os dois grandes movimentos que falamos, o da Diretas Já! e o do impeachment do Collor, foram muito importantes na construção da última fase do protesto. Das Diretas Já! veio toda a simbologia nacional, o "verde-amarelismo" 'que já tinha sido recuperado em parte durante os protestos contra o Collor com as pinturas faciais, e dos protestos do "Fora Collor" se recuperou a agenda da ética na política.

Mas em junho, diante de um monte de bandeiras nas ruas, o que agregou aqueles que queriam menos Estado, menos burocracia, menos político e menos PT foi a agenda da corrupção. É por isso que podemos ver como junho estruturou o que está acontecendo até agora no Brasil: a agenda da corrupção e a própria solução do impeachment fazem parte do conjunto de elementos recuperados dos movimentos do passado.

BBC Brasil - O grupo de "patriotas" das ruas se sobrepôs aos demais?

Alonso - Dentro do campo patriota há vários grupos com agendas autônomas entre si, mas como "campo", ele ganhou, porque o que aconteceu na sequência foi o predomínio dele. Em 2014 e em 2015, os patriotas passaram a fazer manifestações sozinhos, quando os autonomistas e os socialistas não estavam mais nas ruas.

Depois, quando a campanha anti-PT e anti-Dilma já estava avançada, o campo socialista voltou em defesa ao governo. Uma defesa tíbia, em que pesava mais a defesa de uma agenda que da pessoa da presidente. A esquerda demorou muito para se articular na defesa do governo e, quando o fez, reuniu menos gente do que o campo oposto. Isso vai em um crescente até o impeachment da Dilma, depois disso, todas as manifestações esvaziaram.

BBC Brasil - O volume de pessoas nas ruas durante aquele mês indica o fracasso dos mecanismos de participação popular institucionais da constituição de 1988?

Alonso - Talvez o Brasil seja o país no mundo que mais tenha essas instâncias de participação, mas esse modelo exige duas coisas que o cidadão comum hoje não tem: tempo e conhecimento especializado.

BBC Brasil - A paralisação de caminhoneiros poderia gerar um novo ciclo de protesto como foi junho de 2013?

Alonso - Há semelhanças: começou com os transportes e passou a abranger outros temas, não há organização central, mas uma pluralidade de grupos, a comunicação pela internet tem sido usada para chamar manifestantes e o governo está perplexo e batendo cabeça. O processo ainda está correndo, então não dá para saber no que vai dar.