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Última actualização: 18 Junho, 2009 - Publicado às 19:07 GMT
 
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Os olhos abertos de Ricardo Rangel
 

 
 
Ricardo Rangel em casa numa foto tirada em Maio de 2009 por Sérgio Santimano

Ricardo Rangel, mestre do fotojornalismo e do ‘olhar inconformado’ sobre a História de Moçambique faleceu em Junho de 2009 aos 85 anos. A sua morte ainda está viva, como lembram à BBC alguns dos seus amigos, antigos alunos e camaradas de profissão.

“Amava bom vinho, boa comida, boa mulher e claro… Jazz; era um grande trabalhador, que perdeu a vida ainda trabalhando aos 85 anos, coisa muito rara; ele pensava na vida, não pensava na morte e tudo em que ele se metia era realmente com uma grande paixão; era um pai… Um pai, sim; o Ricardo, para mim, foi um fotógrafo completo”, comentaram alguns dos que com ele comungaram.

Ferro em brasa

Numa entrevista dada há quatro anos à BBC, Ricardo Rangel lembrou como tinha fotografado a dor, para que não nos esqueçamos, de Moçambique dos anos pré-independência.

Censura
Foto de Rangel, tirada em 1973
 O jovem tinha perdido uma rês e o patrão, o dono do gado, que era um português, marcou-o como castigo a ferro em brasa na testa! Essa fotografia, fiz tudo para publicá-la mas não foi possível.
 
Ricardo Rangel, em entrevista, em 2005, à BBC

“Tenho uma foto que está a correr mundo que é a do jovem pastor marcado na testa com um ferro de marcar gado. Uma foto feita em 1973. O jovem tinha perdido uma rês e o patrão, o dono do gado, que era um português, marcou-o como castigo a ferro em brasa na testa! Essa fotografia, fiz tudo para publicá-la mas não foi possível”, recordou.

Foi em casa na noite da passada quinta-feira, 11 de Junho que, aos 85 anos, Ricardo Rangel faleceu, como lembra a amiga Maria Pinto Sá, sua antiga camarada de redacção na revista Tempo – a primeira a cores em Moçambique - de que Rangel foi co-fundador.

“Rangel estava sentado a perguntar que horas eram (20 para as oito) e ele pediu à mulher, Beatriz, que o avisasse quando chegasse a hora do Telejornal. Às cinco para as oito a Beatriz chamou-o. Como ele não respondia, ela foi à sala onde o Ricardo estava mas o Ricardo já não estava”.

Condecorações

Mas está - e fica - a sua arte de fotografar, que Rangel, citando o mestre francês, Henri Cartier-Bresson, definia como "colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração".

Pedinte em Lourenço Marques dos anos 70
Rangel não fechou os olhos à realidade da sociedade moçambicana da era colonial

Ricardo Rangel participou em dezenas de exposições em diversos países, incluindo o museu Guggenheim, em Nova Iorque e foi condecorado com a distinção de Oficial das Artes e Letras pelo Governo francês.

Nascido em 1924 na então Lourenço Marques, Rangel foi o primeiro fotojornalista não-branco em Moçambique, ao integrar, em 1952, a equipa do “Notícias da Tarde”.

Foi ainda um dos fundadores em 1970 da revista "Tempo", onde trabalhou com Maria Pinto Sá, que ouvimos há pouco, e já depois da independência, criou o Centro de Formação Fotográfica, onde dirigia cursos de fotojornalismo.

Ricardo Rangel numa entrevista a Teresa Lima em Maputo, em 2005

Sérgio Santimano, um fotógrafo moçambicano radicado na Suécia, foi nos princípios dos anos 80 camarada de redacção de Ricardo Rangel no semanário Domingo.

No passado mês de Maio, Sérgio foi a Maputo com o propósito de fotografar o mestre no seu quarto preferido (ver foto de abertura).

“Ricardo tinha um quarto muito especial onde as fotos nas paredes reflectiam o tempo e os colegas da sua vida de fotojornalista. Era também o quarto onde ele tinha a sua música, que era o Jazz!”, evocou.

Jazz

Com uma vastíssima colecção de discos e gravações, Ricardo Rangel criou um clube nos Caminhos de Ferro em Maputo, chamado "Chez Rangel".

Orlando José da Conceição, um dos seus alunos de fotografia, que também tocava clarinete e saxofone, foi um dos que lá actuou.

“Nós tocávamos standards de Charlie Parker, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Lester Young… Ele era amante do bebop, sobretudo. Era a música que nos ensinava. Ele convidava os jovens para sessões de audição e vinha sempre às nossas actuações, viajávamos com ele para fora do país, para as províncias… Fosse onde estivéssemos ele estava sempre a nosso lado.”

O Jazz acompanhou Ricardo Rangel até à sua última morada

Naíta Ussene, editor fotográfico do semanário Savana, que aprendeu fotojornalismo com Rangel na revista “Tempo”, nunca se esquecerá de lembrar da constante chamada de atenção do mestre para o melhor momento da foto e a lição de sempre capturar as fotos de pessoas ou situações que normalmente não são notícia".

“Deu-me tudo o que tinha para dar e para me ensinar. Considerava-o como pai, um pai espiritual. Ele dizia-me, ‘Naíta, um homem tem sempre de aprender, todos os dias’, e isso, para mim, ficou…”

Um outro aluno, Tomás Cumbana, relembrou como Ricardo Rangel era como mestre.

“Era muito exigente… Muito exigente; mas querendo o bem de todos nós, que entendíamos porque é que ele estava a ser daquela forma. Ele era uma pessoa tão aberta, uma coisa rara porque as pessoas querem ser as únicas, as pessoas querem ser insubstituíveis mas o Ricardo sempre se esforçou para que as portas estivessem abertas para todos os fotógrafos”.

Rua Araújo

No tempo colonial, Rangel costumava fotografar mulheres, porque na altura ninguém lhes queria dar importância como notícia. As suas fotos da Rua Araújo eternizaram as prostitutas de mini-saia e perucas que nos anos 60 e 70 trabalhavam nos bares de Lourenço Marques.

Numa entrevista, em Junho de 2005 à BBC, o mestre recordou como era ser fotógrafo antes da independência.

“No tempo do colonial fascismo havia uma censura férrea à imprensa e era muito difícil fazer passar uma foto. Muitos dos censores eram estúpidos e muitas fotografias foram publicadas no tempo colonial que denunciavam o regime, a opressão e a injustiça que eles deixavam passar.

As suas fotos da Rua Araújo eternizaram as prostitutas dos anos 60 e 70 em Lourenço Marques

“Quanto à minha foto do jovem marcado a ferro em brasa na testa, nem o Expresso, um jornal de direita mas que de vez em quando publicava umas coisas que a gente queria passar aqui mas não podia, conseguiu publicá-la”.

A morte de Ricardo Rangel reduz uma geração marcante da História cultural de Moçambique: José Craveirinha (o poeta que recebeu o Prémio Camões), os fotógrafos Carlos Alberto Vieira, Salvador Ribeiro – todos já falecidos – e ainda o jornalista Guilherme de Melo e o fotógrafo Kok Nam.

São também desse mesmo grupo o poeta Rui Knopfli (falecido em Portugal) e o pintor Malangatana.

 
 
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