50 anos do AI-5: artistas censurados contam como a repressão influenciou suas obras

  • Júlia Dias Carneiro
  • Da BBC News Brasil no Rio de Janeiro
Obra Carlos Zílio

Crédito, Ricardo Miyada

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No início dos anos 1970, Carlos Zílio foi preso pelo regime militar e executou essa série de desenhos no cárcere. Eles foram expostos ao público pela primeira vez em 1996

Numa tarde de maio de 1969, soldados invadiram o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio à caça de elementos subversivos. O alvo da operação? A arte. Os militares foram enviados para impedir a exposição VI Bienal de Jovens em Paris, que estava prestes a abrir as portas ao público.

A mostra reunia obras de artistas brasileiros que haviam sido selecionados para a Bienal de Paris daquele ano, como o ainda jovem Antonio Manuel, que nos anos seguintes viveria uma série de episódios de censura.

"Era uma exposição de arte, mas o nível de violência que se vivia era tamanho que ela foi fechada por soldados de metralhadora", lembra Manuel, hoje com 71 anos. "Meu trabalho foi muito marcado pelo clima repressivo, de exceção, que vivemos. E o período mais agressivo, mais violento, veio com o AI-5."

Decretado pelo presidente Artur da Costa e Silva há cinquenta anos, em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 foi o mais duro dos 17 atos institucionais decretados a partir de 1964 pelo regime militar, autorizando o presidente a fechar o Congresso por tempo indeterminado, cassar mandatos parlamentares e suspender direitos políticos de qualquer cidadão.

O ato suspendeu o habeas corpus para presos políticos e institucionalizou a repressão estatal e a prática da censura, inaugurando o período mais violento da ditadura - e impondo uma forte ruptura sobre a produção cultural brasileira, no cinema, na música, no teatro e nas artes visuais.

A exposição do MAM foi uma de muitas mostras fechadas, inviabilizadas ou esvaziadas a partir de então, e Antonio Manuel é um de muitos artistas que tiveram obras e projetos censurados, seja diretamente pelo regime militar ou pela censura prévia de instituições de arte, temerosas de afrontar o regime.

Mesa Executiva 1

Crédito, Cortesia Regina Silveira e Luciana Brito Galeria

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Mesa Executiva 1 (1975), de Regina Silveira, fez parte de uma exposição sobre o impacto do ato institucional nas artes visuais, realizada entre setembro e novembro deste ano em São Paulo

"Houve o decreto do dia para a noite. E, de uma hora para a outra, tudo mudou", lembra o artista plástico carioca Carlos Zílio, de 74 anos. No dia da publicação do ato, ele participava de uma reunião de diretórios acadêmicos na PUC-RJ - até que a polícia chegou. Quase foi preso, mas conseguiu escapar. Um ano depois, não teria a mesma sorte.

"Depois do ato, o pouco espaço de atuação política e cultural que tínhamos nos primeiros anos (após o golpe), ainda que com tensão permanente, cessou. A ditadura ficou escancarada. Passamos a uma repressão absoluta", afirma Zílio.

"Você não podia se expressar de modo nenhum. As atividades públicas foram proibidas e o ambiente geral era de proibição, intimidação, opressão", lembra.

'Parede invisível'

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O carioca Cildo Meireles, de 70 anos, foi um dos artistas que tinham obras na exposição repentinamente fechada pelos militares no MAM em 1969. Ele lembra o choque que ato causou, e a repercussão que teve em vários âmbitos.

Naquele ano, a Bienal de Paris acabou ficando sem representação brasileira e, a partir dali, ganhou força o movimento de boicote à Bienal de São Paulo, que ganhou dimensão internacional. A Bienal permaneceria esvaziada por uma década.

No âmbito pessoal, porém, a repressão fez com que Cildo e outros artistas mudassem seus rumos criativos. Ele lembra de como interrompeu investigações que vinha fazendo, que tinham foco mais formal, para fazer obras de forte cunho político, como Quem Matou Herzog? (1975) e Tiradentes: Totem-monumento ao Preso Político (1970). Nesta, queimou galinhas vivas penduradas a um totem de madeira em um dia 21 de abril, dia de Tiradentes, ironizando o culto promovido pelo regime militar ao líder da Inconfidência Mineira, executado pelo Estado.

"Foram trabalhos decorrentes da indignação e de ver meu projeto pessoal de artista tão invadido pelas circunstâncias", afirma. "Eu vinha me dedicando às séries Espaços Virtuais e Volumes Virtuais, mas me senti impelido a tratar dessas questões políticas no trabalho."

"A censura é uma obstrução permanente da mente", considera Cildo. "Você vira escravo de uma parede invisível."

Da arte para a guerrilha

O início da atuação de Carlos Zílio como artista coincidiu com a ditadura. No ano do golpe, em 1964, ele era um jovem estudante de arte. Nos primeiros anos do regime, participou de exposições importantes para afirmar uma linguagem de contestação na arte brasileira, como Opinião 65, Opinião 66 e Nova Objetividade Brasileira (1967).

O cunho político de seu trabalho foi se acentuando. Até que, em 1968, teve uma virada mais radical. "Chegou um momento em que a demanda política sobre mim era maior do que o meu trabalho poderia dar conta. E resolvi me engajar politicamente com maior empenho", conta Zílio.

Zílio se engajou na política estudantil e na guerrilha urbana. Em 1970, já na clandestinidade, foi atingido por três tiros em um confronto com policiais e levado preso. Passou dois anos e meio na prisão - e se debruçou novamente sobre o desenho, com os parcos recursos que tinha: papel e canetinhas hidrográficas coloridas.

Os trabalhos só sobreviveram porque sua mulher ia levando-os embora a cada visita à prisão. Foram expostos pela primeira vez em 1996, e novamente neste ano, em uma exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

Obra Lute

Crédito, Vicente de Mello

Legenda da foto,

O início da carreira de Carlos Zílio coincide com os primeiros anos da ditadura militar e ganha forte carga política. Lute (1967) foi idealizado como um múltiplo de tiragem ilimitada

"Foi uma superação da minha intimidade. Achei que deveriam ganhar uma dimensão pública, porque era o testemunho de uma época", afirma Zílio

A série de desenhos foi um dos destaques da exposição AI-5 50 anos - Ainda Não Terminou de Acabar, sobre o impacto do ato institucional sobre as artes visuais, realizada entre setembro e novembro deste ano no Tomie Ohtake.

"É uma produção que constitui um diário de cárcere, com as ampulhetas, o calendário dos dias que não passam, o corpo ensanguentado, o corpo preso em jaulas", pontua Paulo Miyada, curador-chefe do instituto.

"Era uma produção que não chegava a público nenhum, não podia ser vista por ninguém. Ficou como um grito guardado que agora podemos conhecer, e nos fala muito daquela época", considera.

'Aquele abraço'

O preâmbulo do AI-5 enaltecia os objetivos da "Revolução Brasileira de 31 de março de 1964". De acordo com o documento, o decreto vinha reforçar os esforços do governo militar de assegurar a "autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção (...)".

Se o regime militar buscava negar a alcunha de ditadura, entretanto, o AI-5 tornou-a explícita, dando amplos poderes aos governantes para punir os que fossem considerados inimigos do regime. O Congresso foi fechado no dia da publicação do decreto, e permaneceu fechado por quase um ano. Nesse período, mais de 300 políticos tiveram seus direitos cassados.

Cláudio Tozzi, 'A Prisão' (1968)

Crédito, Coleção Marta e Paulo Kuczynski

Legenda da foto,

A obra Prisão (1968), de Cláudio Tozzi, também foi exibida em exposição no Instituto Tomie Ohtake que lembrou o impacto do ato institucional nas artes visuais

No cenário cultural, o ato marcou a disseminação da censura na imprensa, no cinema, no teatro, na música e nas artes visuais. Vieram as prisões de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o êxodo de artistas que tinham atuação mais incisiva, como Glauber Rocha, Chico Buarque, Geraldo Vandré, José Celso e os próprios Caetano e Gil, após a prisão.

Gil compôs Aquele Abraço como uma canção de despedida antes de partir para o exílio em Londres, enaltecendo as belezas e riquezas culturais que mais lhe eram caras no Brasil, ao mesmo tempo em que dava as costas para o local onde ficou preso, a que se refere no verso "alô, alô, Realengo".

Se por um lado a repressão gerou uma série de violências e interdições na arte, por outro, fomentou modos de resistência, de resiliência e invenção.

"De 1969 em diante, há um grande refluxo das formas de agir e se expressar", diz Paulo Miyada. "Uma parte da produção artística começa a emular modos da guerrilha, no sentido de agir clandestinamente, sem aviso, sem identificação, no espaço urbano. Outras iniciativas vão para redes subterrâneas de distribuição, como os cineclubes clandestinos. Uma parte da produção fica altamente cifrada para poder produzir um discurso crítico, mas de forma que a maior parte da população não entende, como maneira de proteger a expressão", explica.

"O artista continua produzindo, mas o alcance do seu trabalho para a população de uma maneira geral diminui muito", ressalta o curador.

'Impotência'

O fechamento da VI Bienal de Jovens em Paris no MAM-RJ, conhecida como a Pré-Bienal de Paris, foi o primeiro de diversos episódios de censura e interdição que marcaram a carreira de Antonio Manuel - que nasceu em Portugal, mas chegou ao Rio aos cinco anos de idade.

O crescente inconformismo levou-o a inscrever "seu próprio corpo" como obra no Salão Nacional de Arte Moderna do Rio, em 1970, novamente no MAM-RJ. Sua inscrição não foi aceita, mas ao se ver no vernissage, no meio do público e das outras obras, Manuel decidiu executar a sua.

"Pelo clima de exceção que a gente vivia, eu senti que os quadros, a escultura e o desenho não tinham mais uma força de comunicação tão grande. Assim, pelo clima de exceção que a gente vivia, resolvi tirar a roupa toda dentro do museu. Fiquei nu, e completei a minha obra", relata.

A obra "Repressao outra vez"

Crédito, Arquivo pessoal

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A obra 'Repressão outra vez' (1968), de Antonio Manuel, havia sido selecionada para a Bienal de Paris de 1969 e faria parte da VI Bienal de Jovens em Paris, no Museu de Arte Moderna do Rio, antes de ir para a França. No dia previsto para a abertura, o MAM foi invadido por militares e a mostra foi impedida de acontecer

Seu gesto foi descrito pelo crítico Mario Pedrosa como um "exercício experimental de liberdade", que se tornaria um importante conceito para a arte de contestação de sua geração.

Em 1973, viveu mais um episódio de desgosto, mais uma vez no MAM-RJ. Convidado para uma exposição individual, reuniu-se com a direção do museu para apresentar possíveis projetos. Uma a uma, elas foram sendo vetadas. Eram consideradas políticas demais e poderiam levar a novas retaliações do governo.

A exposição acabou sendo cancelada e as ideias foram organizadas por Manuel em um encarte de seis páginas que conseguiu publicar como um suplemento no impresso O Jornal, que tinha circulação nacional.

Para a capa e a contracapa do encarte, Manuel se deixou fotografar nu, sentado dentro de um ninho construído em escala humana no meio de uma paisagem de dunas, em uma performance em que "tentava botar um ovo", e que batizou de "The Cock" ("o galo", na tradução formal, ou "o pênis", na gíria popular em inglês) - simbolizando o regime de espera e de impotência a que estava imposto.

Revista

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto,

Depois de ter uma exposição cancelada no MAM por temor de que provocasse retaliações do governo militar, Antonio Manuel organizou as propostas que tinha submetido à instituição neste suplemento

"Acho que as novas gerações não têm ideia do que foi o AI-5. Vimos teatros e exposições serem fechadas, filmes censurados, cineastas presos, artistas, militantes e estudantes serem presos e torturados. Foi realmente um ano de chumbo. Tudo isso tinha um reflexo muito grande no trabalho da gente, como artista e como humano. Criou-se uma revolta e um inconformismo muito grande", relembra.

Descontinuidade

Carlos Zílio diz que o AI-5 teve um efeito imediato de fragmentação - com o exílio de artistas, a repressão de reuniões e atividades públicas e a impossibilidade de realizar projetos culturais coletivos.

"O ambiente se tornou absurdamente improdutivo", descreve. "Houve uma dispersão. Muitos artistas foram para fora do Brasil, como Antonio Dias, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Rubens Gerchman. Toda a dinâmica de produção que vinha se desenvolvendo na arte, com novas características, se diluiu. Há uma dispersão e descontinuidade no processo cultural que vinha se desenrolando, uma ruptura na dinâmica. As consequências são difíceis de avaliar", diz Zílio.

Para o curador-chefe do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada, a censura "ampla e irrestrita" impôs "silenciamentos" que atingiram a todos os campos da cultura, e essa violência ser sempre lembrada ao lado das violações físicas, como os casos de morte, tortura, prisão, exílio e desaparecimentos que ocorreram no país entre 1964 e 1985.

"É um clichê que não podemos deixar de repetir: um país sem memória está destinado a repetir o seu passado. Divulgar essa história de forma insistente é uma tarefa social fundamental", considera Miyada.

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