André Ventura, o aliado de Bolsonaro que pode consolidar a direita radical em Portugal

André Ventura

Crédito, Horacio Villalobos/Getty Images

Legenda da foto, André Ventura, líder do Chega, sacudiu o eleitorado aventando a possibilidade de uma suposta fraude eleitoral, o que as autoridades portuguesas negam
  • Author, Joana Rei
  • Role, De Madri (Espanha) para a BBC News Brasil

Depois de anos governado por uma coalizão de centro-esquerda, Portugal deu uma guinada à direita nas eleições parlamentares de domingo (10/3), com a vitória da Aliança Democrática (AD), coalizão entre o Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrático Social (CDS).

Esse resultado transformou também o partido da direita radical Chega, personificado na figura do candidato André Ventura, em uma peça-chave para as intenções da AD formar um governo.

Isso porque a coalização que ganhou a maioria dos votos nas urnas teve um desempenho que ficou abaixo das expectativas, com menos de 1% de diferença e dois deputados a mais do que o Partido socialista (PS), que liderou a coalizão que governou Portugal nos últimos nove anos.

Com isso, para ter uma maioria com folga para formar um governo, a AD precisará do apoio do Chega, que recebeu mais de 1 milhão de votos e elegeu 48 deputados no Parlamento, porque uma aliança com o Iniciativa Liberal (IL) não seria suficiente para conferir à AD a base necessária.

O IL ficou em quarto lugar com apenas 5,08% dos votos e oito deputados. A Assembleia da República, o Parlamento português, tem 230 deputados, dos quais 226 foram eleitos até agora com 99% das urnas apuradas.

Esse cenário torna a coalizão com o Chega o único caminho para concretizar as intenções da AD de criar um governo estável. Caso contrário, pode ser necessário convocação de novas eleições antecipadas.

Mas Luís Montenegro, líder da coalizão encabeçada pelo AD, negou que essa possibilidade está na mesa durante toda a campanha e reafirmou isso após os resultados da eleição.

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Se Montenegro mantiver a promessa de campanha, a saída que resta para o AD é governar em minoria, negociando cada medida com os vários partidos.

Independentemente do que aconteça a partir de agora, o Chega de André Ventura foi considerado o grande vencedor do pleito de domingo, que teve o maior comparecimento às urnas em vinte anos.

As sondagens davam ao partido da direita radical entre 16% e 20% e, no final, conquistou 18,1%.

É mais do que o dobro da percentagem conseguida nas eleições de 2021, onde obteve 7,2%, e quatro vezes mais deputados: de 12 passará a ocupar 48 cadeiras no Parlamento português.

O Chega torna-se assim a terceira maior força política do país.

Após a contagem dos votos, Ventura fez críticas a empresas de pesquisas, meios de comunicação e até ao Presidente da República.

“Esta vitória tem de ser ouvida em muitos locais do país. Tem de ser ouvida no palácio de Belém (residência da Presidência) onde um Presidente da República tentou condicionar à última hora o voto dos portugueses”, disse.

“Mas este bom povo português sabia o que queria e que não se deixaria condicionar, e quem escolhe o governo de Portugal são os portugueses e mais ninguém”.

Ventura disse que o Chega “foi o partido mais perseguido em toda a história”. E disparou: “Espero que muitos jornalistas e comentadores engulam algumas palavras que disseram desde há alguns anos”.

A terceiro crítica foi a empresas de pesquisas: “Então o Chega perdeu gás na última semana? A AD e a IL podiam formar maioria?”, perguntou com ironia. “Espero que alguns diretores de empresas de sondagens se demitam hoje”, concluiu.

Também foi claro sobre a possibilidade de fazer parte do governo.

“Seremos totalmente irresponsáveis se não concretizarmos um governo”, disse, pressionando Luís Montenegro.

“Temos uma maioria para construir, um orçamento para aprovar e isso só pode ser feito com o apoio do Chega.”

Aliado de Bolsonaro

No Brasil, um dos seus principais cabos eleitorais é o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — e qualquer semelhança entre a retórica dele e de Ventura não é mera coincidência.

Em meio à campanha para as eleições legislativas que vão definir o novo governo e o primeiro-ministro de Portugal, Ventura sacudiu o público com o fantasma da fraude eleitoral.

A mesma tática de tentar deslegitimar o sistema eleitoral foi usada por Bolsonaro no Brasil e por outros políticos, como o americano Donald Trump, ao redor do mundo.

Em todos esses casos, como agora, as acusações foram feitas sem fornecer evidências. Bolsonaro, inclusive, foi declarado inelegível até 2030 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em decorrência de um episódio em que divulgou notícias falsas e fez ataques infundados ao sistema eletrônico de votação.

“Está em curso uma tentativa de desvirtuar as eleições. Temos que estar de olho aberto, ninguém pode nos enganar nestas eleições”, declarou Ventura.

Ventura afirmou que havia pessoas do Bloco de Esquerda dizendo nas redes sociais que iam “anular os votos do Chega e da Aliança Democrática (AD) [coligação de direita composta pelo Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrático Social (CDS)]”.

Ele disse também ter recebido “relatos de emigrantes” — portugueses que vivem no estrangeiro e votam nas eleições de Portugal — queixando-se que os votos por correio "não estavam chegando”.

“Esses emigrantes estão fartos de socialismo e social-democracia”, disse, insinuando que as supostas manipulações tinham como objetivo prejudicar o Chega.

Em declaração à agência Lusa, o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições, Fernando Anastácio, descartou qualquer possibilidade de fraude, explicando que não recebeu “nenhuma queixa sobre qualquer tentativa de desvirtuar o resultado das eleições”.

Mas, mesmo sem fundamento, as palavras de Ventura ecoaram nas redes sociais ligadas ao Chega, para tentar semear dúvidas sobre o processo eleitoral e o sistema democrático português.

“Este tipo de retórica teve menor impacto em Portugal do que no Brasil, por exemplo, mas a tentativa de deslegitimar a integridade eleitoral é comum na dinâmica de comunicação de Bolsonaro e Ventura”, explica António Costa Pinto, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este não é, no entanto, o único ponto em comum entre os dois líderes.

“A dinâmica de confronto constante, o desprestígio, [o uso de] fake news, e a introdução de uma linguagem política muito mais violenta são muito fortes na construção da identidade de Bolsonaro e Ventura", avalia Costa Pinto.

"Para eles, [os adversários] são todos vigaristas, aldrabões [trapaceiros], ladrões... tudo numa retórica antiestablishment”, segue o professor.

Em 2023, a Procuradoria Geral da República de Portugal abriu uma investigação contra o líder do Chega sob acusação de difundir notícias falsas nas suas redes sociais.

Ventura sempre negou "cometer qualquer ato ilícito" e disse ainda que “nenhum órgão de comunicação vai dizer ao Chega o que é ou não mentira”.

No mesmo ano, o site de checagem de fatos Polígrafo identificou pelo menos dez informações falsas — atacando pessoas trans, a imigração ou adversários políticos — publicadas no perfil do líder da direita radical.

A BBC News Brasil também questionou a equipe do líder da legenda sobre o tema, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

André Ventura tirando selfie com eleitora durante campanha nas ruas de Portugal

Crédito, Horacio Villalobos/Getty Images

Legenda da foto, O partido de André Ventura tem cerca de 16% do apoio do eleitorado, segundo as pesquisas, mais do que o dobro dos votos alcançados em 2022

Um dos slogans mais utilizados por André Ventura é: “Portugal precisa de uma limpeza”, frase que aparece repetida nos cartazes do partido, com a imagem de vários políticos riscada por uma cruz vermelha.

Uma delas é do primeiro-ministro demissionário, o socialista António Costa. No poder desde 2015, ele renunciou ao cargo em novembro do ano passado depois que a polícia abriu um inquérito para investigar um suposto caso de corrupção envolvendo integrantes de seu governo.

As eleições legislativas antecipadas deste domingo foram convocadas após o pedido de demissão de Costa.

"O Chega, partido populista de direita radical, que faz do combate à corrupção e à classe política uma das suas bandeiras, teve aqui uma conjuntura bastante favorável ao seu crescimento”, observa Costa Pinto.

De comentarista de futebol a líder da direita radical

André Ventura, 41 anos, emergiu em Portugal como comentarista de futebol. Torcedor do Benfica, ele ganhou notoriedade em 2014 ao defender o clube no canal de televisão CMTV.

Formado em direito, Ventura também foi seminarista durante um ano — e trabalhou como professor universitário e inspetor tributário, antes de migrar definitivamente para a política.

Isso aconteceu em 2017, quando concorreu à Câmara Municipal de Loures, perto de Lisboa, pelo PSD. A mensagem principal de sua campanha era dirigida aos ciganos, uma comunidade, nas suas palavras, “que vivia dos subsídios do Estado”.

“O que eu vou dizer pode não ser muito popular, mas é verdade: temos tido uma tolerância excessiva com alguns grupos e minorias étnicas", disse ele, na época, em entrevista ao site Noticias ao Minuto.

Nas palavras de Ventura, famílias, "por serem de etnia cigana", tinham ajuda do Estado para reformar as casas enquanto outras esperavam pelo benefício.

"Quem tem de trabalhar todos os dias para pagar as contas no fim do mês olha para isso com enorme perplexidade", seguiu.

"Isso não é racismo nem xenofobia, é resolver um problema que existe porque há minorias no nosso país que acham que estão acima da lei”, acrescentou.

Ventura não ganhou as eleições, mas aproveitou a atenção da mídia gerada pela polêmica para, dois anos depois, lançar o Chega, prometendo defender os “portugueses de bem”.

Semelhanças e diferenças em relação a Bolsonaro

Bolsonaro

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Bolsonaro convocou os brasileiros que moram em Portugal a votar em Ventura

No início de janeiro, Jair Bolsonaro enviou seu apoio ao político português.

“É muito importante que André Ventura, do Chega, consiga essa cadeira de primeiro-ministro. É a direita, é o conservadorismo, são as pessoas de bem que se fazem cada vez mais presentes”, afirmou Bolsonaro em um vídeo nas redes sociais, fazendo um apelo aos brasileiros que moram em Portugal para votar no Chega.

Há 360 mil brasileiros vivendo em Portugal de acordo com dados divulgados pelo Itamaraty em agosto de 2023. É a segunda maior comunidade brasileira no exterior, atrás apenas dos Estados Unidos.

Defensor do controle da imigração, Ventura quer criar o crime de “residência ilegal em solo português” — e impor cotas anuais de entrada de estrangeiros no país baseadas “nas qualificações dos imigrantes e nas necessidades do mercado português”.

“Não podemos viver em um país onde todo mundo entra sem controle nem critério, sem saber porque entra e ao que vem”, defendeu o líder do Chega.

Ventura nega as acusações de racismo e xenofobia — e afirma que o que ele quer é “uma imigração decente, mas não descontrolada”.

O líder do Chega compartilha com Bolsonaro algumas das suas propostas mais polêmicas, como a castração química para estupradores e pedófilos.

Ele resgatou em 2021 o lema da ditadura “Deus, Pátria e Família”, ao qual acrescentou “trabalho” — mas, diferente de Bolsonaro em relação à ditadura brasileira, Ventura não é um defensor do regime autoritário sob o comando de António Salazar que governou Portugal durante 40 anos.

“Fiquem à vontade comigo porque não tenho nenhum saudosismo de uma República que eu não vivi. Não é isso que me move. Vejo Salazar como vejo outras figuras da história”, disse em entrevista à agência Lusa em 2020.

Ele também não hesitou em condenar os ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, quando apoiadores de Bolsonaro invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal .

Liberal na economia, Ventura defende a redução dos impostos, mas quer também o aumento das pensões e dos salários.

“Há alguma flexibilidade ideológica que é também característica da mobilização eleitoral populista, no que diz respeito à política econômica e social", explica Costa Pinto.

"A direita radical populista tem uma raiz comum, mas depois adapta-se à realidade de cada país. Ventura não resgata o salazarismo, por exemplo, porque isso em Portugal não rende votos”, segue o professor.

O mesmo aconteceu na semana passada com a questão do aborto.

Questionado sobre o tema, depois do assunto ter sido abordado por um político da Aliança Democrática (AD), Ventura afirmou saber que no seu partido “há quem tenha uma posição diferente”, mas que “no momento em que a sociedade está, não é prioritário voltar a criminalizar o aborto”.