Como Carlos Lacerda 'vendeu' golpe de 64 em tour pela Europa

Legenda do vídeo, Carlos Lacerda (ao centro) foi um dos pilares civis do golpe de 64
  • Author, Thomas Pappon
  • Role, Da BBC Brasil em Londres

"Estamos ansiosos por um governo honesto". Esse foi um dos argumentos usados pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda, para justificar o golpe militar de 31 de março de 1964 em entrevista à BBC dois meses depois, em 8 de junho.

Lacerda, um dos principais pilares civis do novo regime militar — e um dos governadores a apoiarem abertamente o golpe que derrubou o presidente João Goulart — embarcara para Europa em maio, pouco após a posse do general Castelo Branco, eleito presidente pelo Congresso, com a missão de divulgar os planos do novo governo.

Segundo pesquisa feita por Vilma Keller para o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getulio Vargas, Lacerda "esteve na França, Inglaterra, Itália, Grécia, Alemanha, Portugal e Estados Unidos, concedendo entrevistas à imprensa e entrando em contato com autoridades governamentais".

Na curta entrevista à BBC, um raro documento de como lideranças de direita brasileiras respondiam a críticas, no exterior, ao golpe militar ("O sr. não acha deprimente ter um general como presidente?" é a pergunta inicial feita pelo apresentador da BBC Colin Jackson), Lacerda diz acreditar que o governo militar era temporário e que o objetivo deste era recolocar o país em uma trajetória voltado "para o futuro".

"As eleições serão convocadas no momento devido, que é outubro de 1965", afirma Lacerda na entrevista, em inglês, concedida ao programa Ten O’Clock em 8 de junho de 1964 — e recentemente descoberta nos arquivos da BBC.

'Intérprete da Revolução'

Na época, segundo historiadores, Lacerda já era visto como possível candidato à Presidência. O próprio apresentador britânico pergunta se ele "esperava se tornar presidente nas próximas eleições".

"Pode ser que aconteça", responde Lacerda. "No momento, estou pensando apenas em conseguir todo o apoio possível para que o governo atual possa reorganizar o Brasil, preparando-o para um futuro brilhante em um futuro próximo."

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Para a historiadora Marina Gusmão de Mendonça, professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora de O Demolidor de Presidentes, sobre a trajetória política de Carlos Lacerda, a "missão oficial" na Europa não foi exatamente concebida pelo governo militar como uma grande arma de marketing para "explicar a revolução" aos europeus.

"Lacerda se dava mais importância do que realmente tinha", diz Mendonça.

"(Os militares) sabiam que ele não era confiável e que não teria respaldo na imprensa estrangeira. Chegando na França, o (presidente Charles) De Gaulle não o recebeu. A imprensa francesa caiu matando em cima dele."

A viagem, segundo Mendonça, teria sido um favor de Castelo Branco a Lacerda, que declarou "que estava muito estressado e cansado com os acontecimentos (no país)".

"Ele se apresentava como 'intérprete da revolução' mas na verdade era um passeio dele (pela Europa)", afirma a historiadora.

O apoio de Lacerda ao governo militar, entretanto, durou pouco. Poucos meses depois, ao ver que seu próprio partido, a União Democrática Nacional (UDN), permitiu o adiamento das eleições a prorrogação do mandato de Castelo Branco, ele passou a fazer oposição ao regime militar.

Quem foi Carlos Lacerda?

Carlos Lacerda (de óculos, no meio) anda pela ruas do Rio de Janeiro ao lado da população em 3 de abril de 1964 após o golpe

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Poucos meses após o golpe, ao sentir que não haveria eleições diretas em 1965, Lacerda (de óculos ao centro) começou a fazer oposição ao governo militar

Carlos Frederico Werneck de Lacerda foi um conhecido e polêmico jornalista, político e empresário brasileiro. Estudou Direito e, na juventude, se dedicou ativamente à militância comunista.

A partir de 1939, quando tinha 25 anos, passou a se distanciar do comunismo e a se tornar um dos mais proeminentes porta-vozes da direita no país.

Ficou conhecido como um dos principais opositores de Getulio Vargas. Lacerda fundou — com capital americano, segundo Mendonça — o jornal Tribuna da Imprensa, que usou em várias ocasiões — muitas vezes com notícias falsas — para atacar Vargas, e, mais tarde, os presidentes Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart.

Em 1954, escapou de um atentado a tiros na entrada do prédio em que morava, na rua Tonelero, em 1954 — e acusou o governo Vargas de ser o mandante.

Em pelo menos duas ocasiões antes de 1964, já tinha se juntado a militares intervencionistas e grupos de direita em tentativas de derrubar governos eleitos: em 1954, instigando as Forças Armadas a pressionarem pela renúncia de Getúlio Vargas, e em 1955, quando participou da tentativa de impedir a eleição e posse de Juscelino Kubitschek.

Em 1960, foi eleito governador do Estado da Guanabara (que tinha sido o Distrito Federal do país antes de Brasília).

Participou de articulações do golpe de 1964. Na véspera de 31 de março, se entrincheirou no Palácio da Guanabara com policiais e voluntários, alertando a população, pelo rádio, de que uma suposta ameaça comunista estaria em curso e que o Palácio estava sob ataque de fuzileiros comandados pelo almirante Cândido da Costa Aragão, fiel ao presidente João Goulart — o que era mentira.

Lacerda rapidamente se desencantou com o regime militar, basicamente, segundo Marina Gusmão de Mendonça, porque sentiu que as chances de haver uma eleição em que ele pudesse concorrer à Presidência se evaporavam.

Assim, ele lançou, em 1966, uma frente de oposição ao regime militar, juntamente com os antigos adversários Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Lacerda foi cassado e preso em 1968. Libertado, voltou a trabalhar como jornalista e escritor, e a se dedicar à Editora Nova Fronteira, que havia fundado em 1965.

Morreu em 1977, vítima de um infarto.

A entrevista à BBC

BBC - Governador Lacerda. O sr. não acha deprimente ter um general como presidente? Quando o sr. acha que o Brasil retomará o seu rumo constitucional normal?

Carlos Lacerda – Esse é um ponto quer acho bom deixar claro: não temos um general como presidente. Temos um presidente como presidente. Ele foi eleito segundo o que determina a Constituição, pelo voto indireto no Congresso, para completar o mandato do presidente anterior. A única coisa que poderia ser considerada ilegal seria a destituição do presidente, mas ele mesmo se destituiu, fugindo para Montevidéu. O Congresso elegeu o general Castelo Branco. Ele é general mas não há nada errado em ser general. (Dwight) Eisenhower (presidente dos EUA entre 1953 e 1961) também era um general.

BBC – Por quanto deve continuar essa situação?

Lacerda - Essa situação se manterá enquanto não tivermos eleições . Elas serão convocadas no momento devido, que é outubro de 1965.

BBC – O sr. está otimista de que nas próxima eleição será possível retornar aos processos constitucionais normais?

Lacerda – Não, eu não espero voltar ao que você chama de 'normal'. O normal que nós tivemos era absolutamente 'anormal'. Espero que possamos retornar ao futuro, se é que posso colocar isso assim. Queremos seguir em frente, fazer reformas democráticas. Estamos ansiosos para ter um governo honesto.

BBC – Governador Lacerda, o sr. espera se tornar presidente nas próximas eleições?

Lacerda – Eu não 'espero'. Pode ser que aconteça. No momento estou pensando apenas em conseguir todo o apoio possível para que o governo atual possa reorganizar o Brasil, preparando-o para um futuro brilhante em um futuro próximo.

BBC – Agora que o ex-presidente Goulart está fora de cena, como o sr. acha que ficarão as relações do Brasil com os países do Ocidente? Ficarão mais próximas?

Lacerda – Acho que sim. O Brasil nunca deveria ter se distanciado de seus laços tradicionais e seus interesses reais permanentes.

BBC – O Brasil quer relações normais com Cuba e o regime de Fidel Castro?

Lacerda – Não. Nós não precisamos de relações com Castro, porque não vendemos (produtos) para ele, e ele não compra da gente. E ele reconheceu isso, dizendo não ver propósito (em manter) relações (com o Brasil).